Intendente & Mouraria

O mundo dentro de um bairro

O bairro mais multicultural de Lisboa é, agora, também um dos mais hipster da cidade. Basta passar umas horas no Largo do Intendente para perceber isso, mas o melhor, mesmo, é circular por algumas ruas e becos e deixar-se surpreender.

“O que estás aí a olhar? Vai mas é para casa assar as batatas doces com canela e açucar. Olha-me este!”
É o Giovani que fala assim na mesa ao lado, n’ O das Joanas, no Largo do Intendente. Está sozinho, mas isso não o impede de conversar com pessoas imaginárias e, às vezes, verdadeiras.

Também é frequente encontrá-lo ali ao lado, no café do Largo Residências, que fecha à segunda-feira, o dia em que o Giovani mandava alguém ir assar batatas. Aliás, este sítio é conhecido por ser “o único onde as pessoas do bairro vão tomar café”, explica Teresa Miguel, a produtora de espectáculos, que está atrás do balcão, sempre em grande azáfama.

“Bye, I’m leaving now, thank you so much for everything”, diz um dos hóspedes que acabou de fazer o check out do hostel, que fica por cima do café. “Bye, I hope I’ll see you soon”, responde-lhe Teresa e a seguir para uma cliente habitual: “Não tem importância nenhuma, dá-me os 20 cêntimos amanhã”.

Giovani fala sempre português, apesar de garantir ter vivido em muitas partes do mundo. Diz que foi engenheiro numa petrolífera, professor, matemático, etc. Na vida real foi “piloto de aviões e ficou assim quando a mulher o deixou”, explica uma das funcionárias da Marisqueira dos Anjos, enquanto faz o gesto a explicar que é maluco.
Será, mas é quase tão estranho ver o Giovani por todos os sítios do bairro (onde se alimenta e conversa livremente) como estarmos numa marisqueira que serve pratos do dia a uns quantos clientes frequentes e apresenta fado aos sábados à noite.

É mesmo assim o bairro cada vez mais hipster de Lisboa. Uma mistura de gentes de praticamente todo o mundo (tanto as que vivem no bairro, como as que passam por lá) e de vários estratos sociais.

No largo

Este cruzamento de pessoas improváveis numa zona da cidade conhecida, até há pouco tempo, pela marginalidade e prostituição, aliada ao processo de requalificação urbana levado a cabo nos últimos três anos, é a grande mais valia do bairro.

Basta passar uma ou duas horas no Largo do Intendente, a ver quem passa, para se perceber um pouco isto.
Passam as indianas de ondulantes saris, as africanas e os seus bubus coloridos, os turistas com as máquinas fotográficas, as crianças com as bolas, os freelancers com as bicicletas (que se dobram enquanto estão sentados na esplanada a trabalhar nos portáteis), os ociosos, os que trabalham na zona, os que vão às compras naquela que é conhecida como a loja mais bonita de Lisboa – A Vida Portuguesa, e que não precisa de apresentações, os artistas residentes do Largo Residências.

À noite o Largo torna-se ainda mais movimentado, sobretudo ao fim-de-semana, com as pistas de dança da Casa Independente a rivalizarem com as do Sport Clube do Intendente.

E um pouco mais à frente, na Rua dos Anjos, as prostitutas sentadas em esplanadas mais ou menos improvisadas das lojas vintage que nasceram ali, paredes meias com as casas noturnas.
“Sim, elas andam por aí, mas é gente muito tranquila. O problema, às vezes, é quem vem de fora”, diz Josiane Lima, dona da Retrox, uma loja de produtos vintage, na Rua dos Anjos, que abriu no início de outubro e vende “pequenas coisas dos anos 50, 60 e 70”.

Cair em tentação

Subindo em direcção ao bairro das colónias, no cruzamento Forno Tijolo/Rua Moçambique é fácil, é mesmo muito fácil, cair em tentação.

Pelo caminho é capaz de acontecerem coisas improváveis como ter de olhar para o céu para responder ao “ó menina, ó menina, diga-me que dia é hoje, por favor”, ou cruzar-se com um Hospital dos Candeeiros, na Rua Palmira.

Mas no tal cruzamento está, então, a Fábrica do Gelado, uma geladaria de duas amigas arquitectas, que estão a aprender, com o Tio Helder, a fazer uns dos melhores gelados de Lisboa.

A Andreia Salavessa e a Zoraima Figueiredo abriram o espaço numa antiga padaria e acontece-lhes de irem lá pessoas pedir pão e fiambre. “Tendo sido uma padaria antiga, existe um grande afeto e memórias, histórias que aconteceram por aqui, que nos vão contando”, explica Andreia.

Andreia, que além de trabalhar no bairro também é residente, diz que o que mais lhe agrada na zona “são as casas (defeito de arquiteta); a proximidade entre as pessoas, os vizinhos; o comércio local que ainda subsiste e o poder andar a pé para todo o lado”.

Ao lado da geladaria fica o Brick café, onde vale a pena experimentar um dos pratos do dia ou os bolos caseiros. Nem sempre é fácil conseguir mesa à hora do almoço, mas o serviço é rápido e o ambiente muito trendy e descontraído.

Em frente fica o BUS Paragem Cultural, umas das várias associações culturais do bairro onde tudo pode acontecer. No dia, ou, melhor dizendo, na noite em que entrámos, dançava-se lindy hop.

Ai, Mouraria

E já que se falou em tentação, é impossível terminar este texto sem referir o Tentações de Goa e tudo o que lá se come, mas o ambotic de cação, ai o ambotic! e o xacuti de frango e o caril de caranguejo e as chamuças de tâmara e a bebinca... Sim, é mesmo de comer e chorar por mais, ou chorar por causa do picante. Depois, a cerveja fresquinha, servida em copos de metal, cai que nem ginjinhas.

O restaurante fica na Rua São Pedro Mártir, 23, ali entre a renovada praça multicultural do Martim Moniz e o Beco do Rosendo, onde se situa a casa da Associação Renovar a Mouraria, que anda há seis anos a revitalizar o bairro, com inúmeras atividades que incluem a população local. Como é o caso, por exemplo, dos jantares de comida do mundo, confeccionados por moradores.

Já agora, não deixe de entrar na “Chinatown” lisboeta que é o Centro Comercial da Mouraria. A maior parte das lojas são de roupa e acessório para revenda, mas ainda se encontra uma, ou outra indiana que vendem especiarias e outros produtos que não se encontram em mais lado nenhum.

É um pouco o que acontece na Rua do Benformoso, paralela à Rua da Palma, onde um dia a Amália deixou presa a alma (no fado Ai, Mouraria), com lojas bastante sui generis e talhos 100% halal.

 

FOTO-REPORTAGEM

Carla Fonseca 2014-10-29

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