O demónio do movimento

Histórias de amor, fugas, crimes, planos macabros, sonhos e ilusões. Embora transitório, o comboio não pertence, definitivamente, à categoria dos chamados não-lugares. Pelo contrário, parece até ter existência a mais, uma vida própria, um feitiço que ataca a imaginação e a põe em marcha. Marta, a Costureira de Palavras, ensaia uma explicação sobre este fascínio.

Na primeira apresentação pública do recém-inventado cinematógrafo, em 1895, os irmãos Lumière lançaram o pânico com a projecção de L´Arrivée d´un train en gare de la Ciotat. Durante 50 segundos apenas, as imagens em movimento de uma locomotiva a dirigir-se (e parecia mesmo que estava a dirigir-se) para fora da grande tela assustou de morte o público. Mas o público voltou. O comboio fez-se, assim, o primeiro objecto-fetiche do cinema.

Já que falamos em fetiches, para os verdadeiros siderodromófilos o filme RR (2007) de James Benning será pura pornografia: comboios sem pessoas, composições de mercadorias, sobretudo, consecutivas, que tingem de metal e ruído as paisagens que atravessam.

Mas também os há que sofrem de siderodromofobia: Szygón, o protagonista do conto O Demónio do Movimento, de Stefan Grabinski (publicado pela Cavalo de Ferro), carrega a maldição de ver-se, ocasionalmente, a meio de viagens ferroviárias cujos locais de partida e de chegada desconhece: «Eram exactamente o comboio, os caminhos-de-ferro e os seus funcionários que encarnavam para ele essa estreita fórmula, esse inelutável círculo vicioso, do qual ele – o homem pobre filho da terra – em vão podia tentar sair.»

Esta história não acaba bem, está bom de ver, embora num tom bastante mais fantástico do que aquele de Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. As doze facadas que liquidaram o pobre sr. Ratchett podem ser misteriosas, de início, mas Hercule Poirot trata, no tempo devido, de esclarecer tudo em termos perfeitamente terrenos. E nem por um instante é posto em causa o sex appeal do comboio mais luxuoso do mundo.

De onde virá este fascínio intemporal pelas viagens de comboio? Runaway train, never going back, cantaram incessantemente os Soul Asylum nos idos noventas, e nós com eles, sonhando com fuga, com aventura, com o desconhecido. Mas, atenção: sobre carris. E, atenção: embalados. Porque nós queremos correr riscos, claro que sim, sobretudo aos 19 anos (que era a idade que eu tinha quando saiu esta canção), mas temos medo. E o comboio é a combinação perfeita de ousadia e colo de mãe.

Mais ou menos pela mesma altura, a francesa Céline e o americano Jesse conhecem-se a bordo de um comboio e escolhem Viena para se apearem e ali passarem juntos as poucas horas que faltam para que sigam noutros comboios, desta vez, separados. Todos nos apaixonámos pelo filme Antes do Amanhecer e talvez tenhamos, até, desejado viver uma história assim; talvez tenhamos embarcado num ou noutro comboio não para chegar a qualquer destino, mas para tentar o destino. A mim, esse filme trouxe-me um passageiro precioso, meu companheiro de viagem desde então. Descobri W. H. Auden pela voz de Ethan Hawke: «oh let not time deceive you / you cannot conquer time».

Será isso que procuramos numa viagem de comboio? A conquista do tempo? Ou do espaço?

Sem o saber, encontrei a resposta a esta questão num poema de Mark Strand, traduzido por Vasco Gato. Esta é a minha resposta. Poderá, ou não, ser também vossa.

«Num campo
eu sou a ausência
de campo.
Acontece
sempre o mesmo.
Onde quer que esteja
sou aquilo que falta.

Ao caminhar
separo o ar
e de todas as vezes
o ar precipita-se
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos motivos
para nos deslocarmos.
Eu desloco-me
para manter as coisas inteiras.»

 

A autora e o blogue
Marta, a costureira de palavras, apresenta-se como “a versão feminina de Cyrano de Bergerac, menos trágica e um pouco menos nariguda”. Editora de conteúdos em diversas plataformas, é no blogue que vai partilhando os seus trabalhos e inspirações (sempre que as palavras não são secretas).
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