Nos últimos 10 mil quilómetros

O desejo de mais dias e noites assim. Assim como? Assim, com aventura e amor. È o que a Polo Norte, do blogue Quadripolaridades, pede às estrelas quando finalmente o pó da estrada assenta.

Fomos quatro pessoas, um mapa em papel, depósito de combustível cheio, mantimentos nos pequenos armários e a Europa à nossa espera. Partimos no tempo em que os GPS eram demasiado caros para quem saíra da faculdade há meses e com a inconsequência de quem acredita que sobrevive sem as novas tecnologias.

Aprendemos a ler um mapa de estrada. Tivemos Madrid no horizonte, tapas debaixo da língua e um tinto de verano nas veias. Enchemo-nos de ganas para descobrir Barcelona. Fomos felizes nas Ramblas e comemos fruta madura na la Boqueria. Deixámos que um artista de rua nos pintasse a alma viajante para o papel.

Tivémos medo de conduzir nos Pirinéus. Comprámos baguetes quentinhas pela manhã e transportámo-las debaixo dos braços como os nativos. Côte d´azur foi um aperitivo para um oásis por detrás de um rochedo: Mónaco recebeu-nos engalanado e principesco. Fizémos a compra mais cara das férias investindo num par de sapatos novos para entrar no casino. Seguimos as pegadas dos campeões na Promenade. Sonhámos com um barco-caravana. Dançámos ao luar. Seguimos por túneis nunca dantes auto-caravanados.

Levámos como guia de viagem um livro que eu lera na adolescência do Dr. Mário Cordeiro: Como sobreviver em viagem: um guia para adolescentes. Nós já não éramos adolescentes. Parámos numa cidade do Norte de Itália para comprar um postal e escrever para casa numa altura em que as pessoas na casa da partida aguardavam letras manuscritas nossas. Dei beijinhos na fotografia do meu namorado da altura que ficara para trás. Sempre às escondidas, que eu nunca fui de mariquices.Levámos apenas um telemóvel e só o usávamos para dar notícias a uma pessoa por dia, que avisava as restantes que estávamos bem.

Enjoámos de enlatados. Às vezes dormíamos em sítios menos sexys como estações de serviço ou áreas de descanso para camionistas. Trocámos histórias com eles. Mas outras vezes dormíamos ao lado do Arco do Triunfo em Barcelona, numa rua com vista para o Mediterrâneo no Mónaco, numa pequena aldeia cinematográfica do Norte de Itália ou numa transversal da Piazza di Spagna em Roma. Ouvíamos sempre música pelo caminho: rádios locais e ainda cassetes. Cantávamos alto e fazíamos coreografias improvisadas. Às vezes adormecíamos a olhar para o vidro traseiro, dizendo adeus, como crianças, aos carros que nos seguiam.

Assistimos a uma procissão nocturna numa aldeia italiana que nunca chegámos a decorar o nome. Comemos pizza em Pisa. Coleccionámos pequenos souvenirs pirosos pelo caminho. Escrevemos num diário de bordo improvisado num "Livro em Branco", colámos bilhetes e panfletos, fotografias que revelávamos pelo caminho e assinaturas de gente que conhecíamos entretanto. Buzinávamos e ouvíamos sempre buzinadelas de alegria quando nos cruzávamos com carros de matrícula portuguesa.

Visitámos todas as igrejas de Roma: todas. Comprámos écharpes para tapar os ombros e ficámos sem palavras no Vaticano. Assistimos a uma homilia pela voz do Papa. Comemos os melhores gelados do Mundo numa pequena gelataria perdida numa rua perdida enquanto estávamos perdidos. Não andámos de vespa e ficámos com pena. Dissemos clichés e lugares comuns como "quem tem boca, vai a Roma".

Não havia emails a bordo, nem facebook ou instagram mas nós éramos, ao vivo, uma verdadeira rede social. Maldissemos o (pouco) civismo rodoviário dos romanos. Passámos sem parar pela Suiça. Fomos a Paris ver a Torre Eiffel. Guardámos os últimos cêntimos que tínhamos para comprar orelhas de Mickey e de Minnie na Eurodisney. Ansiámos por um banho decente num duche com pressão. Sentimos o efeito "big brother" e começámos a fartarmo-nos um bocadinho de partilharmos tanto tempo, tão pouco espaço.

Parámos em Andorra para comprar um relógio. Percebemos que já não compensa comprar coisas em Andorra. Voltámos mais calados do que partimos. No lugar das palavras as memórias visuais, dos cheiros, dos sabores e das vozes que coleccionámos pelo caminho. Chegámos sempre com vontade de partir: engolir alcatrão, quilómetros, paisagens e vida.

Partimos mais um mão cheia de vezes cá para dentro, sozinhos, com outras pessoas, já casada, já com filha, com smartphone e GPS, com email no telemóvel e rádio substituído com entrada USB. Nos últimos 10 mil quilómetros uma coisa em comum: à noite, quando todos adormecem, abrir a pequena persiana da janela do tejadilho e pedir desejos às estrelas. O desejo de mais dias e noites assim. Auto-caravanar é um verbo que se conjuga sempre, mas sempre, com aventuras. E amor.

A autora e o blogue
Da Pólo Norte sabe-se que é psicóloga, vive em Cascais, é casada com Mámen e tem uma filha Ana, com 2 anos. Em 2008 fundou o blogue Quadripolaridades que alimenta diariamente com posts acutilantes e cheios de humor. É conhecida na blogosfera por dizer (quase) tudo o que lhe vem à cabeça. Mantém ainda o blog MãeGyver, onde relata os seus "conhecimentos de maternidade na ótica do utilizador".
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Por Polo Norte 2015-08-26

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