Museu do Neo-Realismo

Uma casa com causas

O centro histórico de Vila Franca de Xira acolhe o único museu mundial dedicado ao neorealismo, movimento literário e artístico que despertou consciências sociais e políticas no século passado. Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes ou Manuel da Fonseca, entre outros, reúnem-se num só espaço e abrem portas a autores da nova geração mas com o mesmo sentido crítico. Venha descobrir as múltiplas faces desta casa para a cidadania.

Haverá melhor morada para um museu dedicado ao neorealismo que a Rua Alves Redol? É lá, num edifício de linhas contemporâneas que Vila Franca de Xira presta homenagem a este e outros autores que fizeram da cidade o primeiro polo de um dos movimentos culturais mais influentes do século XX português. Além de Redol, um filho da terra, também Soeiro Pereira Gomes ou Arquimedes da Silva Santos passaram pelo concelho dando expressão física a esta corrente artística nascida em finais dos anos 30 (em pleno Estado Novo) e fortemente influenciada pelos ideais de esquerda.

O neorealismo nunca deixou de marcar a identidade local mas foi sobretudo em 2007, quando o museu foi inaugurado, que ganhou destaque nos roteiros turísticos da terra. Desde logo graças a uma casa de arquitetura marcante assinada por Alcino Soutinho que, por si só, já merece uma visita. A este argumento acrescenta-se a entrada gratuita e, claro, um vasto e diversificado espólio que ultrapassa as fronteiras da literatura e estende-se a outras áreas, como a música, a pintura, o cinema, o teatro e a poesia. Para completar as sete artes principais só falta mesmo a dança mas, no futuro, também ela terá direito a uma referência.

Neorealismo ontem e hoje

No grande edifício de Alcino Soutinho parece haver espaço para tudo e para todos. A começar pelos neorealistas menos conhecidos, como Augusto dos Sanches Abranches, escritor e agitador cultural da lusofonia (que ocupou a chamada sala da literatura até 20 de outubro de 2014), ou Arsénio Mota, que lhe irá suceder a partir de 1 de novembro. Livros, manuscritos e objetos pessoais darão a conhecer a vida e a obra deste autor vivo.

Ainda no piso térreo (onde também está a receção, uma livraria, um anfiteatro e uma cafetaria) encontramos uma sala de exposições temporárias, esta dedicada aos novos criadores, caso do fotografo Diogo Simões que por esta altura apresenta o trabalho Noct. A ideia do museu é fazer a ponte entre a temática original e os novos territórios das ideias e da cultura, num diálogo intergeracional que projeta o museu para o futuro.

O primeiro piso também está dedicado a exposições temporárias, como a mostra de fotografia contemporânea Vende-se, de Augusto Brázio (patente até 16 de novembro de 2014) ou a homenagem a Joaquim Namorado, o chamado “herói do neorealismo mágico” (visitável a partir de 6 de dezembro). Em ambos os casos a crítica social e política ganham protagonismo, sugerindo que, tantos anos depois, os ideais neorealistas mantêm-se atuais e pertinentes.  

Uma casa com forma e conteúdo

Os últimos dois pisos do museu são ocupados na totalidade pela exposição principal, intitulada Batalha pelo Conteúdo. Esta expressão criada por Alves Redol evoca uma das maiores discussões dentro do movimento neorealista já que, para uns, devia privilegiar o conteúdo - a arte útil, muito politizada - e para outros também não poderia esquecer a forma – a arte pela arte. O terceiro andar foca-se, sobretudo, na primeira perspetiva e começa por recuar até à génese desta corrente artística, associada a artigos literários em jornais da época (como O Diabo ou O Sol Nascente) e ao lançamento de dois livros icónicos: Gaibéus, de Alves Redol, e Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes -, este último inspirado nos “meninos que nunca foram homens” dos esteiros do Tejo.

Depois de lembrados outros escritores neorealistas, como Manuel da Fonseca, Bento de Jesus Caraça ou José Rodrigues Miguéis, chegamos a uma área sobre a censura que recorda a ligação quase umbilical deste movimento à resistência anti-fascista. Segue-se um espaço dedicado à música, onde se fazem ouvir Zeca Afonso e Lopes-Graça, e outro sobre as artes plásticas, com trabalhos de Álvaro Cunhal ou Júlio Pomar. Por aqui se começa a perceber a multidisciplinaridade do neorealismo.

Já no quarto piso explica-se a evolução do movimento em busca da arte em si (a forma como complemento ao conteúdo) e alguns dos autores que o concretizaram, como Carlos de Oliveira ou Urbano Tavares Rodrigues. Mas também se destaca a literatura infanto-juvenil (muitos recordar-se-ão do livro Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos), o teatro (Bernardo Santareno é incontornável) e o cinema de Manuel de Guimarães, o único realizador português que levou obras neorealistas à tela. O ponto final da exposição evoca a herança do movimento não só para o futuro da literatura – autores como Manuel Alegre, Ary dos Santos ou Baptista Bastos perpetuaram a sua estética e ideais – mas da própria história portuguesa, que virou uma página com o 25 de Abril. Sim, a Revolução dos Cravos também tem o seu quê de neorealista.

Números entre palavras

E que herança deixa o museu para o futuro? Para lá do testemunho histórico e pedagógico das exposições este espaço municipal também realiza inúmeras atividades, como debates ou sessões de leitura, além da produção cultural inerente à edição de catálogos sobre o neorealismo. No fundo, trata-se de trazer visibilidade a um vasto e valioso acerco com mais de 110 mil documentos e 25 espólios de artistas. Um deles, o de Manuel da Fonseca, foi entregue em mãos pelo próprio escritor no antigo centro de documentação (o precursor do museu) antes de morrer. Hoje ha de estar orgulhoso com o destino que lhe deu. 

Nelson Jerónimo Rodrigues 2014-10-22

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